segunda-feira, 9 de maio de 2016

O estranho caso dos personagens que desapareciam da história, por Maria Alice

O vento uivava lá fora e a chuva fustigava a janela do meu quarto enquanto eu, mortificada de preocupação, procurava em vão moldar a almofada à minha cabeça. Ainda sentia o barulho do motor do avião a zoar nos ouvidos. Mudei de posição incontáveis vezes, sentia o corpo cansado da viagem de longas horas no último lugar do avião que nos trouxe de volta, mas o sono não vinha.
Horas antes tinha avisado o Senhor Ministro de forma insistente, que tinha acabado de regressar de viagem, que precisava de descansar, pedi-lhe que não comparecesse ao misterioso rendez-vous, que era um logro, um embuste, mas impulsivo como é, não me deu ouvidos. Antes me ordenou que encomendasse um vistoso ramo de flores e mandasse preparar o seu melhor smoking e cartola.
O ribombar ensurdecedor de um trovão, seguido do clarão forte do relâmpago, fez-me saltar da cama. O meu coração não me enganava, o Senhor Ministro corria perigo e eu precisava de ir ao seu encontro. Não havia tempo a perder. Prendi o cabelo num coque, calcei os stilettos pretos e vesti a primeira coisa que encontrei, a gabardine pousada na cadeira do quarto, cingi o cinto vigorosamente, e liguei ao motorista para que me levasse à morada onde tinha deixado o Senhor Ministro.
Era um edifício antigo mas bem preservado e via-se luz em duas janelas do terceiro andar. A porta de madeira trabalhada estava aberta e eu corri para me abrigar da chuva e entrei. Subi as escadas que me levaram ao terceiro andar e deparei-me com uma porta aberta. Um longo corredor levava-me a uma sala ampla, comprida. Bem no centro, uma cadeira tombada, o tapete enrugado e o ramo de flores desfeito indicava que algo de muito grave se tinha passado ali, como se tivessem arrastado um corpo inanimado, o do Senhor Ministro! Estremeci. Em cima de uma mesa escura com tampo de mármore havia um telefone fora do descanso. Do outro lado da linha uma voz falava incessantemente e, aflita, pedi ajuda, que chamassem a polícia, o exército, os serviços secretos, alguém, o Senhor Ministro corria perigo de vida. Não cheguei a desligar o telefone, senti uma forte pancada na cabeça e ficou tudo escuro. Retomei os sentidos fora da história, amarrada ao Senhor Ministro.
- Fónix, Maria Alice! Porque é que demorou tanto tempo? Ajude-me mas é a desatar estas cordas e vamos embora daqui que já vi que afinal a gaja que eu conheci na net era um tarado que só queria brincar aos fotógrafos, andava aí aos saltos a tirar fotografias com uma máquina sem rolo e depois foi embora. Vá, meneie-se, serpenteie-se, mulher! Continue, a corda está a ganhar folga. Isso! Já está, vamos! Espero que tenha mandado o motorisa esperar, Maria Alice!
Na sala ficou apenas a voz, falando ininterruptamente pelo telefone.

6 comentários:

  1. Maria Alice,

    O seu zelo não tem preço! Até faz despertar em mim sentimentos que diria, elevados...

    :)

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    1. Ora, C(anconetista) N(acional) Gil, não faço mais do qe a minha obrigção enquanto secretária ministerial. E ainda que essa não fossem as funções de uma secretária, foi ainda em criança que assumi a responsabilidade de o servir sempre.

      Mas conte-me, C.N. Gil, que sentimentos elevados são esses que desperto em si?

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    2. Oh, Maria Alice,

      É uma sublime elevação da...
      ...alma! Sim, é isso, alma...

      Por exemplo, imagino-a, na sequência de algo que escrevi à pouco, Ao lado do Sr. Ministro na tribuna oficial no dia de Portugal, vestida com as cores da bandeira de Portugal e até se me sobe um fervor patriótico...

      :)

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  2. "depressa percebi que aquilo era gente duvidosa, perigosos esquerdalhas miniatura, de barba cerrada, camisola de gola alta preta e blazers de veludo cotelê amarrotados, e então, pressagiando uma situação menos clara, tirei imediatamente a minha varinha mágica de dentro da cartola e disse com voz grossa enquanto lhes apontava a varinha: Saiam! Xôoo!"


    ahahahahahahahahahahahahahahahahahahahaha

    impagável!

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  3. Óh Maria Alice... explique-me lá uma coisinha.
    Como pode ouvir primeiro o trovão e só depois ver o clarão?
    São as noites mal dormidas, é o que é. :)

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    1. Assim mesmo, como escrevi, primeiro ouvi o estrondo, levantei-me em sobressalto e quando tirei a venda com que durmo vi o clarão. Era um trovão muito forte, com um grande clarão.
      Bem sei que a luz viaja muito mais expressa que o som, mas era uma tempestade muito forte e estava próxima, relâmpago e trovão faziam-se notar praticamente em simultâneo.

      Noto-o muito atento, anónimo, posso pedir-lhe ajuda para descobrir quem quis sequestrar o Senhor Ministro?
      Ele falou-me nuns gnomos de esquerda, barbudos e vestidos sem requinte. Também me falou num fotógrafo estranho. Por trás disto tudo estará alguém que se fez passar por mulher apaixonada e, pela internet, marcou o encontro.

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