quinta-feira, 5 de maio de 2016

Um dia como outro qualquer

E aqui estou eu sentado à secretária, a luz do computador brilhando na penumbra, cegando-me, entrando-me pelos olhos, os óculos de ver ao perto pousados no tampo, não me permitindo ver nada no raio de um metro, selvagem, autêntico, a juntar letras que formam palavras e depois frases, textos inteiros jorrando das minhas mãos firmes e seguras, textos comprimidos numa só folha, concebendo ordens que decidirão o futuro dos outros, uma satisfação trabalhar com o cérebro, uma coisa viva, uma maneira de retaliar contra o mundo, de impor aos outros a sua dose de castigo. E aqui estou eu sentado sobre a grande cadeira rotativa, vacilando e recuperando o equilíbrio, cada ideia mais admirável que a anterior, a mão esquerda ancorada sobre o papel, a direita segurando a Montblanc, um clip preso entre os dentes. O sabor do metal na boca. Braços e ombros como cordas agora, fortes e curtidos pelo esforço, pelo tempo passado aqui. Os músculos, uma maneira de recordar, um retorno, o trabalho árduo como única consolação. E então escrevo durante horas, alinhavo frases, serro-lhes as vírgulas, alço-as para o sítio certo, enfio-lhes escoras por baixo, endireito o papel sem me importar no entanto que fique para sempre torto, o gabinete torna-se uma jaula, um campo de batalha, sem ninguém a quem pedir ajuda, a responsabilidade pairando sobre mim, desejando estar assim, abandonado, sozinho, sem ter sequer a Maria Alice como testemunha, como um animal feroz. Simplesmente o mais forte desfazendo o mais fraco.


4 comentários:

  1. Havias de ver isso da mão esquerda. Um homem canhoto é muito mais sexy!

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    1. Sou ambidestro, Lady Kina. Um homem com mãos duplamente ágeis.

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  2. "O homem admira sua obra; a julga desmedida; encontra nela um poder misterioso que ele não lhe deu"

    (Ora, Senhor Ministro, sabe que estou sempre consigo, mesmo quando não me vê ou ouve. Esse é, aliás, o maior elogio que me pode fazer).

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